“Dizer a palavra não é um ato verdadeiro se isso não está ao mesmo tempo associado ao direito de auto expressão e de expressão do mundo, de criar e recriar, de decidir e escolher e, finalmente, participar do processo histórico da sociedade. Na cultura do silêncio as massas são ‘mudas’, isto é, elas são proibidas de criativamente tomar parte na transformação da sociedade e, portanto, proibidas de ser.”
Paulo Freire, Ação Cultural para a Liberdade, 1970
A saga de três gerações da família Benjamin, atravessada pela Ditadura Militar, é o foco de “Fico Te Devendo Uma Carta Sobre o Brasil” (Daza Filmes, 2019, 88min), de Carol Benjamin. Em sua estréia como diretora de um longa-metragem documental, Carol “investiga a persistência do silêncio como ferramenta de apagamento da memória”, como sintetiza a sinopse oficial. A cultura do silenciamento asfixia a democracia, ensinou Paulo Freire, proibindo as massas de ser. Já a produção cinematográfica brasileira mais relevante de nossa época é aquela que rasga as mordaças, afronta a História Oficial escrita pelos opressores, e vai abrindo caminhos para a autêntica participação social. Uma das histórias que estão no âmago do documentário é a prisão ilegal do pai de Carol, César Benjamin (click e acessa os artigos dele publicados pela Ed. Contraponto): aos 17 anos de idade, ele tornou-se preso político da Ditadura empresarial-militar instalada no país com o Golpe de 64. Aprisionado em Agosto de 1971, ficou 3 anos e meio em uma cela solitária. Depois, mais 2 anos em prisão comum. Por pressão da Anistia Internacional, que o declarou o “Preso Político do Ano” em 1975, César consegue ser deportado para a Suécia em 1976, indo ao encontro de seu irmão mais velho, Cid Benjamin, que também havia sido preso político da ditadura e já morava à época em Estocolmo. A avó de Carol e mãe de César, Iramaya Benjamin, também manifesta-se como figura histórica de relevância: o filme a celebra em sua infatigável luta em prol da anistia ampla, geral e irrestrita para os perseguidos pelo terrorismo de Estado. Na crítica publicada pela Revista Cult, destaca-se que “o prisma que Carol procura mover e contar é o das cartas trocadas entre Iramaya e Marianne Eyre, membra da Anistia Internacional em Estocolmo, na Suécia, onde César se exilou quando saiu da prisão até a anistia falseada de João Batista Figueiredo (em 1979), quando pôde retornar ao Brasil.” (Por Manoel Ricardo de Lima, Out. 2020) Carol Benjamin vai em uma jornada de reconstrução de uma história que não é só familiar, é coletiva. Para tal fim precisa ir até a Suécia, pesquisar nos arquivos da Anistia Internacional de Estocolmo, em busca de pistas que lhe permitam compreender melhor os destinos de seu pai, seu tio e sua avó, realizando um belíssimo filme “composto de muitos falares e alguns silenciares” (como escreveu Carlos Alberto Matos). Deste modo, este filme-ensaio se alça à dimensão de uma reflexão poética e filosófica sobre a memória (individual e coletiva, entretecidas). É uma obra audiovisual de sabor um tanto Proustiana, um Em Busca do Tempo Perdido que se passa nos anos-de-chumbo: Carol quer capturar os rastros e vestígios que o regime militar quis rasgar, entregar para as novas gerações as caixas pretas já todas arrombadas, disponíveis para que possamos dar vazão às verdades que os opressores de ontem e hoje desejam mudas e mortas. Para juntar os cacos e construir com eles seu caleidoscópio fílmico, Carol precisa afrontar o silêncio, tanto aquele imposto pelo regime autoritário e opressor (que deseja massas mudas e esforça-se por extinguir a efetiva participação popular no poder) quanto o calar-se que acomete os traumatizados. Protagonista de seu próprio filme, Carol Benjamin se coloca na postura audaciosa de quem quer abrir uma série de caixas pretas e, como Audre Lorde, quer afirmar que não é o silêncio que vai nos proteger. Assim como fez Petra Costa em Democracia e Vertigem, Carol não tem pudores de narrar em primeira pessoa do singular uma saga familiar que ela sabe ser de importância coletiva. Os silêncios familiares que ela vivencia, sem saber explicar ao certo, instigam-na a decifrar o mistério num mergulho imersivo na Psiquê dos presos políticos da ditadura. Explora assim, com evocações de Fernando Pessoa e planos sombrios, em que as grades confinantes na tela convivem com uma voz em off que busca dar carnalidade à vivência do encarcerado. Uma hipótese desponta: aqueles que foram torturados, maltratados, postos no pau-de-arara, expostos às mais horrendas formas de degradação humana, acabaram saindo do confinamento torturante imposto pela ditadura com uma atitude de trancamento em sua subjetividade, uma atitude que se manifesta por sintomas de afasia, uma dificuldade tremenda para expressar as vivências de sofrimento indizível impostos pelo aparato ditatorial de repressão. Para além dos esforços hercúleos que o preso precisa realizar para manter a sanidade mental e não surtar, há a crônica dos interesses intelectuais do jovem César Benjamin, de seu devir-filósofo, de sua avidez pelo estudo. Detrás das grades, além de testemunhar a vida cotidiana das lagartixas e das aranhas que lhe acompanham na cela solitária, Benjamin traduz textos (como fez Lênin) e vai tornando-se algo semelhante a um Gramsci brasileiro. Tentaram prendê-lo para calá-lo, mas não sabiam que sua mente se recusaria à servidão, que seria sempre curiosa, crítica, criativa. Apesar de sua situação kafkiana, preso sem ter sido processado, engulido por um cárcere ilegal e escandaloso. Em um dos momentos de alívio cômico do filme, Iramaya relata que tentava levar livros para o filho no cárcere, mas quase todos eram proibidos. Os milicos não deixavam entrar nem mesmo O Pequeno Príncipe, nem mesmo obras sobre os filósofos pré-socráticos. Com uma ginga malandra digna de Garrincha, Iramaya um dia convenceu os carcereiros do filho a entregarem a ele uma obra de Althusser que fazia a análise crítica do marxismo. Aí passou… Iramaya, no filme, é alçada a um status de heroína cívica brasileira, em um processo através do qual Carol Benjamin age de maneira Górkiana, revelando o devir de uma mulher que antes era pacata, casada com um oficial do Exército, mas que politizou-se diante das injustiças sofridas por sua prole. Iramaya foi se engajando até tornar-se uma das lideranças mais importantes do país ao fundar o Comitê Brasileiro pela Anistia. Denunciou bravamente a tortura como crime hediondo e gritou em alto e bom som que torturadores não podem e não devem ser anistiados! De algum modo, Iramaya Benjamin também evoca outras mães lationo-americanas que sofreram com a desaparição ou o assassinato, pelos Estados ditatoriais, como as célebres Madres de La Plaza de Mayo na Argentina.Publicado em: 30/03/21
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia